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Cheirinho de sucesso: "Fiquei cega e virei uma expert em perfumes!"

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Para algumas pessoas, perder a visão é uma tragédia. Para mim, foi o começo de uma vida nova. Fiquei cega em 2003 por conta de complicações da diabetes e, ao mesmo tempo em que um mundo se fechou, outro se abriu. É claro que tentei recuperar a visão. Fiz sessões de laser e nove cirurgias, mas nada resolveu o problema. Minha cegueira era incurável. Foi nesse momento que, correndo risco de entrar em depressão, descobri um curso que resgatou minha autoestima: o de avaliador olfativo, um profissional que trabalha lado a lado com os perfumistas e ajuda a desenvolver fragrâncias exclusivas! Assim nasceu uma paixão e um ganha pão que me provou que as coisas nunca estão completamente perdidas.

Acordei sem ver por causa da diabetes e fiz nove cirurgias

O mais estranho dessa história é que eu sempre tive nariz bom para perfumes, mas nunca encarei isso como uma vocação. Quando tinha 15 anos, descobri que perfumista era uma profissão e que os melhores cursos eram obviamente franceses. Como não dava para pagar uma coisa cara dessas, desencanei, concluí o colegial e comecei a trabalhar na parte administrativa de empresas e escritórios. Estava desempregada e à espera de um processo seletivo em abril de 2003 quando uma amiga me convidou para passar o feriado de 1º de maio no Rio de Janeiro. Ah, que delícia! Fiquei maravilhada com as paisagens belíssimas da cidade, que encheram meus olhos. Curti muito e não senti nada de estranho o feriado todo que me preparasse para o que estava por vir.

Fui para casa dormir assim que voltei para São Paulo. Até aí tudo bem. O problema foi no dia seguinte, quando abri os olhos e... nada. Como só vi breu, achei até que estava com a vista embaçada de sono. Levantei para jogar água no rosto e dar aquela acordada, mas acabei batendo a cabeça na parede. Nem cheguei ao banheiro. Assustada, tateei o caminho até o telefone e com muito custo disquei o número da minha mãe, que me levou para um oftalmologista às pressas. O médico me examinou na hora e disse que eu havia tido um derrame ocular, ou seja, alguns vasos sanguíneos dos meus olhos tinham se rompido, causando hemorragia interna. Como se não fosse suficiente, minha retina, a parte de trás do olho que capta luz e envia sinais ao cérebro, tinha descolado. Socorro!

A causa provável daquela cegueira repentina foi a diabetes tipo 1, que tenho desde os 5 anos. Sempre me cuidei, segui uma dieta equilibrada e apliquei insulina direitinho, mas nem isso me protegeu. Por algum motivo que não entendi bem, tive alterações nos vasos sanguíneos na região dos olhos, o que gerou uma doença chamada retinopatia diabética. Para acabar com a hemorragia, passei por cinco sessões de laser óptico, em que feixes de luz foram disparados 800 vezes! O procedimento não tinha anestesia e eu sentia meus olhos queimarem, mas não podia piscar. Como doeu! Depois de uma temporada usando dois tampões no rosto, passei para a fase das cirurgias, que recolocariam a retina no devido lugar. Só que a operação não funcionou. Já estava morando com minha mãe, mas ainda tinha esperanças de voltar a ver. Cheguei a procurar outros especialistas e passei por nove cirurgias, mas nada adiantava! Meu caso não tinha cura...

Sem uma cura, fiz um curso de avaliadora olfativa e me encontrei!

Depois de um ano buscando uma solução, aceitei que meu caso era irreversível. Tentei me adaptar à minha nova condição da melhor forma possível, sem reclamar. O médico viu meu estado e sugeriu que eu procurasse grupos de apoio para aprender a lidar com a perda da visão. Fui até o Instituto Dorina Nowill, uma instituição voltada para deficientes visuais que já conhecia da televisão e comecei a aprender a andar com bengala. Um dia, esbarrei com um sujeito no corredor e senti um cheiro conhecido. “Você está usando Issey Miyake?”, perguntei, me referindo ao perfume dele. Batata! Esse homem era um dos coordenadores do lugar e viu meu potencial. Na hora, falou de um curso de avaliador olfativo que seria oferecido pelo instituto e disse que eu deveria me inscrever. Havia apenas dez vagas e nós, os concorrentes, éramos 200. Não seria fácil, mas fui escolhida por já ter um talento para identificar aromas mesmo antes de ficar cega. E aí, no próximo ano e meio, aprendi sobre as matérias-primas dos perfumes, a história da perfumaria, o marketing dessa indústria e muito mais. Foi uma luz no fim do túnel.

Pouco antes de pegar meu diploma, fiquei sabendo que uma grande multinacional da área da perfumaria estava precisando de estagiários. Era uma oportunidade imperdível de entrar para o mercado. Me inscrevi no processo seletivo, mesmo sabendo que havia uma vaga e dez colegas de curso estariam na disputa. Depois da entrevista, teste olfativo e dinâmica de grupo, fui contratada! Já não sentia mais a tristeza de quando fiquei cega, mas naquele dia fiquei feliz de verdade. Me sentia num sonho, porque a empresa era uma das mais conhecidas do mundo todo e produzia fragrâncias para grifes nacionais e estrangeiras.

Sou muito bem-sucedida. Trabalho até com perfume de grife famosa!

Fiz estágio nessa empresa por dois anos e fui contratada como avaliadora olfativa em 2008. Desde então, meu trabalho tem sido fazer a ponte entre o perfumista, que cria as fragrâncias, e o cliente. Uso meu conhecimento para determinar se o aroma produzido transmite as sensações que nossos fregueses querem despertar nos consumidores, um cargo de muita responsabilidade. Sei vários segredos dos perfumes, mesmo os chiquérrimos da Dior e da Calvin Klein. Hoje, me considero tão bem-sucedida que quase agradeço ao revés do destino que tirou minha visão. Graças a isso, apurei meu olfato e me tornei uma verdadeira farejadora. Com o tempo, aprendi a viver sem enxergar e hoje já nem sinto falta. Distingo fragrâncias como ninguém e me sinto realizada. - BRUNA DE FREITAS AGUILAR, 33 anos, assistente de fragrância, São Paulo, SP

Prestar atenção deixa o olfato mais apurado

Pessoas que nascem cegas ou perdem a visão acabam desenvolvendo os outros sentidos mais do que aquelas que enxergam. “Isso acontece por uma questão de necessidade. Como o deficiente visual não tem a imagem, ele deve exercitar mais os outros sentidos para identificar um lugar ou objeto. Precisa perceber o mundo pelo cheiro, os barulhos, o contato com as mãos ou o gosto. Tudo isso fica mais apurado”, explica Henrique Ferraz, professor de neurologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Um estudo recente da Universidade de Montreal, no Canadá, confirma essa tese e vai além.

Segundo os pesquisadores, não é que os cegos fiquem com os demais sentidos apurados, como se desenvolvessem uma habilidade especial. A explicação é a de que, como os odores do ambiente passam a ser muito mais importantes para a representação visual do deficiente, ele acaba prestando mais atenção nesses sinais e, logo, se torna mais eficiente em identificá-los. “O deficiente visual precisa ouvir o som do ventilador ou sentir o vento na pele para saber que ele está ligado. Ele precisa apalpar, sentir o cheiro ou o gosto de um hambúrguer para identificá-lo como tal”, exemplifica Ferraz. Afinal, a sobrevivência de um cego depende disso.
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