Dia da Mulher: mais que flores, elas querem igualdade de direitos
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No Dia Internacional da Mulher, a história de mãe e filha que juntas são um exemplo de perseverança e superação. Diante de complicações que muitas pessoas não conseguiriam enfrentar, Maria Lúcia Gonçalves, de 65 anos, e Darliane Gonçalves, de 30, criaram e mantém um projeto que oferece ensaios de dança a pessoas com alguma deficiência física ou motora. É a Associação Projeto Fonte de Luz, que tem apoio da Lei de Incentivo à Cultura.
Luta e superação
Moradora de Divinópolis, cidade com 213 mil habitantes, Maria Lúcia nasceu em uma família humilde. Filha de um carpinteiro com uma dona de casa, começou a trabalhar quando ainda era criança. Na adolescência, o pouco dinheiro que ganhava costurando roupas era usado para pagar despesas do lar. Apesar das limitações financeiras da família, ela conseguiu fazer faculdade e escolheu o curso de Direito, pois queria entender das leis e, assim, continuar ajudando a família.
Durante a faculdade, Maria Lúcia se encantou por um colega. Eles começaram a namorar e, poucos meses depois, ela engravidou. Estavam no terceiro ano da faculdade. “Foi um tumulto danado. Esse meu namorado não queria que eu seguisse com a gravidez e prejudicou bastante minha vida o máximo que pôde. Até mesmo alguns colegas da faculdade tentavam me convencer a abortar”, contou.
Lúcia ignorou a opinião contrária e seguiu em frente. Mas a gravidez não saiu conforme o planejado. Darliene nasceu prematura, aos seis meses de gestação. “A deficiência dela foi consequência de um erro médico. Quando entrei em trabalho de parto e fui para o hospital o profissional que me atendeu não admitiu que era preciso fazer uma cesárea rápida, nem deixou que colegas a fizessem. Eu já estava sofrendo com aquilo e a minha bebê também. Tanto que ela nasceu cianótica [com a pele em tom roxo, causado por insuficiência respiratória]. Depois do parto, os médicos disseram que não tinham perspectiva de vida para minha filha. Olhei para aquela bebê e jurei fazer o que fosse preciso para que ela ficasse bem”, contou a mãe.

Mãe e filha criaram e mantém projeto de dança para pessoas com deficiência (Foto: Reprodução)
Mesmo com as dificuldades impostas pelo parto, Maria Lúcia continuou estudando. Formou-se em Direito no ano de 1986. Sem receber pensão alimentícia do pai da menina – isso só passou a acontecer quando ela completou sete anos, o diploma de conclusão do ensino superior era para a mãe uma garantia de um futuro melhor para a família. “Me comprometi a trabalhar ao máximo para ter dinheiro suficiente para pagar o tratamento da minha filha, que seria um tratamento constante”, disse.
Quando completou dois anos e seis meses de idade, a menina começou a frequentar a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae). Foi atendida na instituição até os sete anos, quando foi indicada a uma escola regular. “Só que as escolares regulares naquela época não eram obrigadas a acolher alunos especiais como ela. Conseguimos matriculá-la. A partir de então, minha filha e eu passamos por muitos dissabores até chegar aonde chegamos”, disse Maria Lúcia.
Quando Darliane tinha sete anos de idade, a mãe saiu para trabalhar em outra comarca. Quando voltou, encontrou a filha sozinha e descobriu que Darliane havia demitido a empregada que tinha sido contratada para cuidar dela. “A Darliane nunca gostou de cigarro e essa pessoa fumava demais. Quando a mulher foi acender um a menina mandou ela ir embora, por justa causa”, contou Maria Lúcia, agora rindo da situação.
A dificuldade em conseguir uma babá que soubesse lidar com Darliane levou Maria Lúcia a deixar a profissão. “Dei um chute na advocacia. Percebi que o mais importante para mim não era o dinheiro que eu ganharia trabalhando. Era minha filha, que estava em casa e precisava de mim. Resolvi voltar a costurar. Trabalhando em casa eu teria tempo para alimentá-la corretamente e levá-la aos médicos, quando fosse preciso”, comentou.
Em 2009, a família foi surpreendida por um acidente. “A gente morava em uma casa alugada em uma pequena vila na Rua Goiás, região central. Era aniversário da Darliane e eu estava preparando alguns quitutes que seriam consumidos durante a festa, que seria na casa de uma madrinha dela. Eu precisei trocar o botijão de gás. Por causa do meu problema de vista, não consegui me certificar se havia fechado corretamente a válvula de gás. Houve um vazamento e um incêndio começou. Assustada e sem saber o que fazer, joguei água no botijão. Isso piorou a situação. As chamas tomaram conta da parede e chegaram ao forro, que era de PVC [material de fácil combustão]”, contou Maria Lúcia.
Poucos dias antes a família havia comprado novos móveis e eletrodomésticos. Tudo foi destruído no incêndio. No momento em que o fogo começou, Darliane estava tomando banho. Por sorte o namorado de uma vizinha (a quem hoje ela chama de “anjo”) entrou na casa em chamas e resgatou a garota do banheiro. “Eu ainda consegui voltar à cozinha e fechar a válvula do botijão, para evitar uma explosão. Havia o risco de explodir antes de eu fechar, mas eu precisava tentar. Assim que corri para fora da casa, ela desabou inteira. Por sorte nós três tivemos só alguns ferimentos leves. A Darliane inalou muita fumaça tóxica, que danificou as cordas vocais dela. Por isso ela é rouca”, explicou a mãe.
Certa vez, relataram mãe e filha, uma professora pediu que todos os alunos levassem à aula um caderno de caligrafia. “Mas havia um laudo médico que comprovava que a Darliane não conseguia escrever à mão. Sabendo disso, eu questionei o pedido. Essa professora não gostou e passou a nos perseguir de várias formas”, contou Maria Lúcia.
Na mesma época, a mãe ficou sabendo da existência de uma sala recurso numa escola estadual na região central. “Nesta sala, a Darliane começou a ser alfabetizada. Depois, a mesma professora que nos perseguia e que passou a ocupar o cargo superintendente de ensino especial ficou sabendo que minha filha estava estudando lá e decidiu interferir, com o objetivo claro de nos prejudicar. Ela ainda guarda rancor pela discussão gerada pelo pedido de um caderno de caligrafia. A mulher jurou para mim que eu nunca conseguiria transformar a Darliane em uma pessoa digna. Eu disse a ela: ‘isso é o que vamos ver'”.
Quando estava prestes a concluir o curso, Darliane – que já estava alfabetizada – precisou fazer uma prova. Pouco tempo antes, a superintendente teria fechado a sala e queimado todo o arquivo. “Uma professora da minha filha disse que viu essa mulher queimando os documentos que comprovavam a passagem da Darliane por aquele curso. É a coisa mais banal que se possa imaginar”.
“A superintendente começou a recomendar que eu passasse a levar a Darliane a uns salões de igreja onde pessoas com diferentes tipos de deficiência costumam se reunir. Ela queria deixar subentendido que minha filha deveria se relacionar apenas com pessoas com situações parecidas com a dela e ficar longe de gente ‘normal’. Aquilo era uma afronta a nós. Não aceitamos nada daquilo e continuei tentando colocá-la numa escola, para fazer a prova e cursar os anos seguintes do ensino”, relatou Maria Lúcia.
Certa vez, segundo Darliane, a superintendente disse à mãe que mesmo que a menina fosse aceita por alguma escola, jamais seria capaz de passar nas provas. “Quando fui matriculada estudei pra valer. Ficava em casa, na cadeira de rodas, estudando durante horas e horas. Fiz as provas e passei com boas notas. Quando minha mãe mostrou as notas à superintendente e a mulher viu que eu poderia me matricular no ensino médico ficou revoltada. Em tom de ironia, disse que da próxima etapa eu não passaria”, relatou.
A moça começou a estudar em um centro de estudos supletivos. Nessa instituição surgiram novos perrengues. “Uma professora exigiu que a Darliane fizesse provas escritas, certamente influenciada pela superintendente. Voltei a ressaltar que tínhamos laudos médicos que comprovavam a incapacidade da minha filha de escrever à mão. Ela só conseguia fazer prova oral e era assim que as provas dela deveriam ser. Todas elas, sem exceção”, contou a mãe.
Diante da nova adversidade, novamente mãe e filha choraram juntas em casa. “Pensamos em jogar a toalha. Desistir de tentar vencer os obstáculos que estavam colocando para nós. Mas com muita fé recuperamos nossa determinação e decidimos não ceder”, ressaltou a mãe.
Mas elas não desistiram. Em 2012 Darliane começou a estudar na Escola Estadual Engenheiro Pedro Magalhães, no Bairro Esplanada – o mesmo em que ela mora. “Essa escola tem um ensino completamente diferente. Eles telefonaram para minha casa para confirmar o meu interesse em estudar lá e me receberam e me ensinaram muito bem, diferente de todos os outros lugares onde estudei”, disse ela.
Em 2013, ela se formou no ensino médio. “Eu queria ter visto a cara de surpresa daquela professora e superintendente quando soube que minha filha se formou no ensino médio. Mais do que superar a expectativa dela, conseguimos superar as nossas próprias. Isso é muito bacana”, acrescentou a mãe.
No mesmo ano, a moça decidiu ir além. Prestou vestibular para direito em uma faculdade de Divinópolis. “Fim sem nenhuma esperança de passar, mas minha boa nota no Enem [Exame Nacional do Ensino Médio] me favoreceu. Eu estava passando por uma crise de depressão muito forte e o resultado do vestibular me deixou muito feliz”, disse Darliane.
Faculdade
Em 2014, Darliane foi diagnosticada com um tipo de aceleramento dos batimentos cardíacos e já passa por tratamento. “Minha filha e eu passamos por uma grande provação ao longo de todos esses anos. A julgar por tudo o que sofremos, não era para nenhuma de nós estar aqui. Hoje, nenhum médico consegue entender como a parte cognitiva da Darliane é tão boa [ela entende perfeitamente tudo o que ocorre ao seu redor], mesmo tendo apenas um lado do cérebro funcionando”, disse Maria Lúcia. “Com essa vitória da minha filha decidi passar ainda mais tempo com ela. Muitas vezes quando ela está estudando em casa fico sentada ao lado dela. Leio os livros e tiro dúvidas dela em casa. Acho bom porque, de certa forma, relembro meus tempos de advogada”, acrescentou.
“Outro dia eu me surpreendi ao ver, na faculdade, um memorial em homenagem aos alunos da primeira turma de direito da faculdade. Tem a minha mãe lá”, contou Darliane.
“Hoje, alguns antigos colegas meus, inclusive alguns que foram contra minha gravidez, são professores dela na faculdade”, contou Maria Lúcia.
“Costumo dizer que minha mãe é muito forte, porque passamos por momentos muitos difíceis. Ela é a pessoa que mais admiro. Agradeço a ela por ter confiado em mim quando eu ainda era só um feto e a maioria das pessoas condenava a minha concepção. Ela quis ser mãe quando decidiu seguir com a gravidez – e conseguiu. Não acredito que outra pessoa faria por mim tudo o que ela fez e ainda faz. Minha mãe é meu grande orgulho e faço tudo para não decepcioná-la”, disse Darliane.
Associação Projeto Fonte de Luz
A vontade que mãe e filha têm de superar limites estimulou as duas a criarem e manterem um projeto que oferece ensaios de dança para pessoas que sofrem de alguma deficiência física ou motora.
“Quando a ortopedista que consultávamos em Belo Horizonte disse que a Darliane não teria mais ganhos com a fisioterapia, ofereceu a ela várias modalidades de terapia que serviriam para estimular alguns movimentos do corpo. Ela preferiu a dança, também chamada de balé sobre cadeira de rodas. Após um ano de prática em Belo Horizonte, o pessoal do hospital sugeriu que cada paciente levasse o projeto para a cidade. Quando voltamos a Divinópolis, fizemos uma minuta, apresentamos à Prefeitura e recebemos autorização para funcionar”, conta Maria Lúcia.
Uma academia de ginástica na região central cede o espaço físico para os ensaios, que ocorrem aos sábados. Uma coreógrafa acompanha os movimentos e avalia as potencialidades de cada um dos participantes e cria coreografias específicas para eles. Além de trabalhar a coordenação motora, a dança favorece estimula os sentimentos. Com apoio da Lei de Incentivo à Cultura, a Associação Projeto Fonte de Luz tenta vencer dificuldades. “Oferece qualidade e autoestima. Permite o desenvolvimento das capacidades de cada um e estimula a inclusão”, finalizou Darliane.
No Dia da Mulher, o exemplo de Maria Lúcia e Darliane mostra que, mais que flores, todas as mulheres merecem respeito, independente de suas condições físicas ou psicológicas. A luta pela igualdade, seja ela qual for, é uma luta diária e, mais que felicitar as mulheres que estão ao redor por essa data, é preciso se engajar nessa luta junto a elas por direitos iguais para todos.
Luta e superação
Moradora de Divinópolis, cidade com 213 mil habitantes, Maria Lúcia nasceu em uma família humilde. Filha de um carpinteiro com uma dona de casa, começou a trabalhar quando ainda era criança. Na adolescência, o pouco dinheiro que ganhava costurando roupas era usado para pagar despesas do lar. Apesar das limitações financeiras da família, ela conseguiu fazer faculdade e escolheu o curso de Direito, pois queria entender das leis e, assim, continuar ajudando a família.
Durante a faculdade, Maria Lúcia se encantou por um colega. Eles começaram a namorar e, poucos meses depois, ela engravidou. Estavam no terceiro ano da faculdade. “Foi um tumulto danado. Esse meu namorado não queria que eu seguisse com a gravidez e prejudicou bastante minha vida o máximo que pôde. Até mesmo alguns colegas da faculdade tentavam me convencer a abortar”, contou.
Lúcia ignorou a opinião contrária e seguiu em frente. Mas a gravidez não saiu conforme o planejado. Darliene nasceu prematura, aos seis meses de gestação. “A deficiência dela foi consequência de um erro médico. Quando entrei em trabalho de parto e fui para o hospital o profissional que me atendeu não admitiu que era preciso fazer uma cesárea rápida, nem deixou que colegas a fizessem. Eu já estava sofrendo com aquilo e a minha bebê também. Tanto que ela nasceu cianótica [com a pele em tom roxo, causado por insuficiência respiratória]. Depois do parto, os médicos disseram que não tinham perspectiva de vida para minha filha. Olhei para aquela bebê e jurei fazer o que fosse preciso para que ela ficasse bem”, contou a mãe.

Mãe e filha criaram e mantém projeto de dança para pessoas com deficiência (Foto: Reprodução)
Mesmo com as dificuldades impostas pelo parto, Maria Lúcia continuou estudando. Formou-se em Direito no ano de 1986. Sem receber pensão alimentícia do pai da menina – isso só passou a acontecer quando ela completou sete anos, o diploma de conclusão do ensino superior era para a mãe uma garantia de um futuro melhor para a família. “Me comprometi a trabalhar ao máximo para ter dinheiro suficiente para pagar o tratamento da minha filha, que seria um tratamento constante”, disse.
Quando completou dois anos e seis meses de idade, a menina começou a frequentar a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae). Foi atendida na instituição até os sete anos, quando foi indicada a uma escola regular. “Só que as escolares regulares naquela época não eram obrigadas a acolher alunos especiais como ela. Conseguimos matriculá-la. A partir de então, minha filha e eu passamos por muitos dissabores até chegar aonde chegamos”, disse Maria Lúcia.
Quando Darliane tinha sete anos de idade, a mãe saiu para trabalhar em outra comarca. Quando voltou, encontrou a filha sozinha e descobriu que Darliane havia demitido a empregada que tinha sido contratada para cuidar dela. “A Darliane nunca gostou de cigarro e essa pessoa fumava demais. Quando a mulher foi acender um a menina mandou ela ir embora, por justa causa”, contou Maria Lúcia, agora rindo da situação.
A dificuldade em conseguir uma babá que soubesse lidar com Darliane levou Maria Lúcia a deixar a profissão. “Dei um chute na advocacia. Percebi que o mais importante para mim não era o dinheiro que eu ganharia trabalhando. Era minha filha, que estava em casa e precisava de mim. Resolvi voltar a costurar. Trabalhando em casa eu teria tempo para alimentá-la corretamente e levá-la aos médicos, quando fosse preciso”, comentou.
Em 2009, a família foi surpreendida por um acidente. “A gente morava em uma casa alugada em uma pequena vila na Rua Goiás, região central. Era aniversário da Darliane e eu estava preparando alguns quitutes que seriam consumidos durante a festa, que seria na casa de uma madrinha dela. Eu precisei trocar o botijão de gás. Por causa do meu problema de vista, não consegui me certificar se havia fechado corretamente a válvula de gás. Houve um vazamento e um incêndio começou. Assustada e sem saber o que fazer, joguei água no botijão. Isso piorou a situação. As chamas tomaram conta da parede e chegaram ao forro, que era de PVC [material de fácil combustão]”, contou Maria Lúcia.
Poucos dias antes a família havia comprado novos móveis e eletrodomésticos. Tudo foi destruído no incêndio. No momento em que o fogo começou, Darliane estava tomando banho. Por sorte o namorado de uma vizinha (a quem hoje ela chama de “anjo”) entrou na casa em chamas e resgatou a garota do banheiro. “Eu ainda consegui voltar à cozinha e fechar a válvula do botijão, para evitar uma explosão. Havia o risco de explodir antes de eu fechar, mas eu precisava tentar. Assim que corri para fora da casa, ela desabou inteira. Por sorte nós três tivemos só alguns ferimentos leves. A Darliane inalou muita fumaça tóxica, que danificou as cordas vocais dela. Por isso ela é rouca”, explicou a mãe.
Certa vez, relataram mãe e filha, uma professora pediu que todos os alunos levassem à aula um caderno de caligrafia. “Mas havia um laudo médico que comprovava que a Darliane não conseguia escrever à mão. Sabendo disso, eu questionei o pedido. Essa professora não gostou e passou a nos perseguir de várias formas”, contou Maria Lúcia.
Na mesma época, a mãe ficou sabendo da existência de uma sala recurso numa escola estadual na região central. “Nesta sala, a Darliane começou a ser alfabetizada. Depois, a mesma professora que nos perseguia e que passou a ocupar o cargo superintendente de ensino especial ficou sabendo que minha filha estava estudando lá e decidiu interferir, com o objetivo claro de nos prejudicar. Ela ainda guarda rancor pela discussão gerada pelo pedido de um caderno de caligrafia. A mulher jurou para mim que eu nunca conseguiria transformar a Darliane em uma pessoa digna. Eu disse a ela: ‘isso é o que vamos ver'”.
Quando estava prestes a concluir o curso, Darliane – que já estava alfabetizada – precisou fazer uma prova. Pouco tempo antes, a superintendente teria fechado a sala e queimado todo o arquivo. “Uma professora da minha filha disse que viu essa mulher queimando os documentos que comprovavam a passagem da Darliane por aquele curso. É a coisa mais banal que se possa imaginar”.
“A superintendente começou a recomendar que eu passasse a levar a Darliane a uns salões de igreja onde pessoas com diferentes tipos de deficiência costumam se reunir. Ela queria deixar subentendido que minha filha deveria se relacionar apenas com pessoas com situações parecidas com a dela e ficar longe de gente ‘normal’. Aquilo era uma afronta a nós. Não aceitamos nada daquilo e continuei tentando colocá-la numa escola, para fazer a prova e cursar os anos seguintes do ensino”, relatou Maria Lúcia.
Certa vez, segundo Darliane, a superintendente disse à mãe que mesmo que a menina fosse aceita por alguma escola, jamais seria capaz de passar nas provas. “Quando fui matriculada estudei pra valer. Ficava em casa, na cadeira de rodas, estudando durante horas e horas. Fiz as provas e passei com boas notas. Quando minha mãe mostrou as notas à superintendente e a mulher viu que eu poderia me matricular no ensino médico ficou revoltada. Em tom de ironia, disse que da próxima etapa eu não passaria”, relatou.
A moça começou a estudar em um centro de estudos supletivos. Nessa instituição surgiram novos perrengues. “Uma professora exigiu que a Darliane fizesse provas escritas, certamente influenciada pela superintendente. Voltei a ressaltar que tínhamos laudos médicos que comprovavam a incapacidade da minha filha de escrever à mão. Ela só conseguia fazer prova oral e era assim que as provas dela deveriam ser. Todas elas, sem exceção”, contou a mãe.
Diante da nova adversidade, novamente mãe e filha choraram juntas em casa. “Pensamos em jogar a toalha. Desistir de tentar vencer os obstáculos que estavam colocando para nós. Mas com muita fé recuperamos nossa determinação e decidimos não ceder”, ressaltou a mãe.
Mas elas não desistiram. Em 2012 Darliane começou a estudar na Escola Estadual Engenheiro Pedro Magalhães, no Bairro Esplanada – o mesmo em que ela mora. “Essa escola tem um ensino completamente diferente. Eles telefonaram para minha casa para confirmar o meu interesse em estudar lá e me receberam e me ensinaram muito bem, diferente de todos os outros lugares onde estudei”, disse ela.
Em 2013, ela se formou no ensino médio. “Eu queria ter visto a cara de surpresa daquela professora e superintendente quando soube que minha filha se formou no ensino médio. Mais do que superar a expectativa dela, conseguimos superar as nossas próprias. Isso é muito bacana”, acrescentou a mãe.
No mesmo ano, a moça decidiu ir além. Prestou vestibular para direito em uma faculdade de Divinópolis. “Fim sem nenhuma esperança de passar, mas minha boa nota no Enem [Exame Nacional do Ensino Médio] me favoreceu. Eu estava passando por uma crise de depressão muito forte e o resultado do vestibular me deixou muito feliz”, disse Darliane.
Faculdade
Em 2014, Darliane foi diagnosticada com um tipo de aceleramento dos batimentos cardíacos e já passa por tratamento. “Minha filha e eu passamos por uma grande provação ao longo de todos esses anos. A julgar por tudo o que sofremos, não era para nenhuma de nós estar aqui. Hoje, nenhum médico consegue entender como a parte cognitiva da Darliane é tão boa [ela entende perfeitamente tudo o que ocorre ao seu redor], mesmo tendo apenas um lado do cérebro funcionando”, disse Maria Lúcia. “Com essa vitória da minha filha decidi passar ainda mais tempo com ela. Muitas vezes quando ela está estudando em casa fico sentada ao lado dela. Leio os livros e tiro dúvidas dela em casa. Acho bom porque, de certa forma, relembro meus tempos de advogada”, acrescentou.
“Outro dia eu me surpreendi ao ver, na faculdade, um memorial em homenagem aos alunos da primeira turma de direito da faculdade. Tem a minha mãe lá”, contou Darliane.
“Hoje, alguns antigos colegas meus, inclusive alguns que foram contra minha gravidez, são professores dela na faculdade”, contou Maria Lúcia.
“Costumo dizer que minha mãe é muito forte, porque passamos por momentos muitos difíceis. Ela é a pessoa que mais admiro. Agradeço a ela por ter confiado em mim quando eu ainda era só um feto e a maioria das pessoas condenava a minha concepção. Ela quis ser mãe quando decidiu seguir com a gravidez – e conseguiu. Não acredito que outra pessoa faria por mim tudo o que ela fez e ainda faz. Minha mãe é meu grande orgulho e faço tudo para não decepcioná-la”, disse Darliane.
Associação Projeto Fonte de Luz
A vontade que mãe e filha têm de superar limites estimulou as duas a criarem e manterem um projeto que oferece ensaios de dança para pessoas que sofrem de alguma deficiência física ou motora.
“Quando a ortopedista que consultávamos em Belo Horizonte disse que a Darliane não teria mais ganhos com a fisioterapia, ofereceu a ela várias modalidades de terapia que serviriam para estimular alguns movimentos do corpo. Ela preferiu a dança, também chamada de balé sobre cadeira de rodas. Após um ano de prática em Belo Horizonte, o pessoal do hospital sugeriu que cada paciente levasse o projeto para a cidade. Quando voltamos a Divinópolis, fizemos uma minuta, apresentamos à Prefeitura e recebemos autorização para funcionar”, conta Maria Lúcia.
Uma academia de ginástica na região central cede o espaço físico para os ensaios, que ocorrem aos sábados. Uma coreógrafa acompanha os movimentos e avalia as potencialidades de cada um dos participantes e cria coreografias específicas para eles. Além de trabalhar a coordenação motora, a dança favorece estimula os sentimentos. Com apoio da Lei de Incentivo à Cultura, a Associação Projeto Fonte de Luz tenta vencer dificuldades. “Oferece qualidade e autoestima. Permite o desenvolvimento das capacidades de cada um e estimula a inclusão”, finalizou Darliane.
No Dia da Mulher, o exemplo de Maria Lúcia e Darliane mostra que, mais que flores, todas as mulheres merecem respeito, independente de suas condições físicas ou psicológicas. A luta pela igualdade, seja ela qual for, é uma luta diária e, mais que felicitar as mulheres que estão ao redor por essa data, é preciso se engajar nessa luta junto a elas por direitos iguais para todos.